quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Trabalho e subjetividade: o olhar da Psicodinâmica do Trabalho

Por Selma Lancman e Seiji Uchida



O presente artigo discute alguns aspectos teóricos da relação entre subjetividade e organização do trabalho. Para tanto, nos pautamos nos principais alicerces teóricos da abordagem dejouriana: a psicanálise, a hermenêutica e a teoria da ação. Buscamos subsidiar o leitor que queira se utilizar da clínica do trabalho em suas ações de intervenção e pesquisa a avançar teoricamente e a se familiarizar com o debate atual desenvolvido pela Psicodinâmica do Trabalho.

Palavras-chave: Saúde Mental e Trabalho, Subjetividade, Psicodinâmica do Trabalho.

Temos como objetivo discutir a importância da subjetividade hoje e o modo como apreendê-la nas organizações do trabalho a partir de uma abordagem atualmente conhecida como Psicodinâmica do Trabalho. Isso significa privilegiar uma determinada ótica, ou seja, aquela que articula sofrimento e saúde no trabalho. Antes de tratarmos da questão propriamente dita, gostaríamos de contextualizar o problema sobre o qual estamos nos propondo a refletir. Taylor (1995), quando propôs a Organização Científica do Trabalho (OCT) e sua tripla divisão (divisão do modo operatório, divisão entre órgãos de concepção intelectual e execução e divisão dos homens), aparentemente buscou eliminar a subjetividade do trabalho por meio do controle dos corpos dos trabalhadores cindidos de suas mentes. Na realidade, ao observarmos sua concepção de organização como um todo, ele reafirma a importância da subjetividade. A direção e os planejadores – para produzir e impor as diretrizes da empresa, sua política, sua estratégia e seus objetivos – necessitam pensar, decidir, planejar, avaliar, assim por diante. Dejours e Abdoucheli (1994) afirmam que numa organização hierarquizada do tipo piramidal quanto mais se sobe na estrutura da empresa, mais se abrem as possibilidades para a expressão e imposição dos desejos de quem ocupa os postos de chefia. Nesse sentido, somente a alta direção poderia manifestar mais plenamente os seus anseios, pensamentos e desejos. A subjetividade dos trabalhadores é reafirmada pela necessidade de seu controle para que aquilo que foi traçado seja rigorosamente cumprido. Dito de outro modo, sua importância é reconhecida pelo avesso, ou seja, para evitar ao máximo a possibilidade dos trabalhadores criarem obstáculos e desvios na produção. Logo, quanto mais se desce na hierarquia da empresa, menor vai ser a possibilidade de expressão de seus pensamentos e desejos na condução das atividades. Desde então a subjetividade dos trabalhadores é vista, no mínimo, com desconfiança enquanto a dos dirigentes é valorizada. Logo, não se trata na realidade de perguntar se a subjetividade é fundamental ou não hoje, uma vez que ela está sempre presente, mas qual é o lugar que ocupa e que importância tem no contexto atual.

Por exemplo, desde que a ergonomia francesa, na década de 80, fez a distinção entre o trabalho prescrito e o trabalho real, o modo como os trabalhadores lidam com a distância entre eles passa a ser uma questão essencial a ser tratada. Dejours desenvolve os conceitos de inteligência prática e sabedoria prática para dar conta dessa “face oculta do trabalho” (Dejours, 1993b, p. 47). Falar em inteligência e saber prático vai muito além do saber-fazer prático, dos conhecimentos informais e de experiências vividas. O que os diferencia é que a inteligência e a sabedoria prática se enraízam no corpo, é desde a vivência corporal do trabalho que estas vão sendo gestadas. Implicam também uma prática ardilosa, um modo astucioso de lidar com os problemas e enigmas do trabalho. Finalmente, são utilizadas em todas as tarefas e atividades para compreender aquilo que resiste às prescrições e saberes atuais e para engendrar estratégias criativas, inovadoras e engenhosas. Com a crise dos anos 70, Harvey defende a tese de que vivemos um momento de transição do fordismo-keynnesiano (hegemonia do capital industrial) para o da acumulação flexível do capital: [a acumulação flexível do capital] é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo (...) se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais completamente novos (...) (Harvey, 2000, p. 140). É importante assinalar também que a flexibilização da produção implica, ao mesmo tempo, a necessidade de flexibilização do mercado consumidor. No dizer de Harvey (2000), seguindo a escola da regulação , trata-se de transformar as formas de reprodução, ou seja, todas as relações sociais que sustentam e re-põem as relações de produção, para que a nova lógica de acumulação do capital possa se tornar hegemônicahttp://farm4.static.flickr.com/3591/3375443647_ff6c6ca9cb_m.jpg . Especialistas em economia política e história econômica discutem se essas mudanças significam uma nova forma de acumulação (Harvey, 2000) ou se são apenas uma repetição de ciclos históricos do capitalismo (Arrighi, 2000). Não nos deteremos nessa polêmica, pois para os objetivos deste trabalho, uma outra discussão parece-nos essencial: o novo contexto organizacional traz a flexibilização ou a precarização do trabalho? . Para nós essa discussão é fundamental, pois está diretamente relacionada ao lugar que a subjetividade ocupa atualmente. É consenso entre muitos autores (Bergamini, 1994, 1997; Motta & Caldas, 1997; Freitas, 2000; Kets de Vrie, 1997) que trabalham com as questões organizacionais que temas como motivação, liderança, trabalho em equipe, talentos, gestão de pessoas, cultura organizacional, clima organizacional, gestão participativa etc., são fundamentais hoje para que as empresas possam não só sobreviver, mas, se possível, vencer a dura batalha da competição.

Sofrimento psíquico e trabalho

Aqui, a Psicanálise nos ajuda a compreender como a Psicodinâmica do Trabalho pensa e apreende essa vivência no trabalho. Vai ser por meio do conceito psicanalítico de angústia que Dejours irá pensar a gênese do sofrimento que pré-existe ao trabalho 9 . Buscará analisar como ela se origina no sujeito em suas relações primitivas com os pais. A criança, inicialmente, é susceptível à angústia dos pais, principalmente aquela com a qual os pais têm dificuldades de lidar. Ao vivenciá-la passa a senti-la como se fosse sua, pois nesse momento de sua vida não tem condições de distinguir o que é seu e o que é dos seus pais. Quando adquire a capacidade de falar, tenta expressar essa angústia para poder elaborá-la, mas infelizmente não encontra espaço psíquico propício nos pais, pois estes não têm condições de ajudá-la na medida em que a criança recoloca em cena aquilo que os fez sofrer. Essa angústia não elaborada vai adquirir uma característica enigmática e será origem de uma curiosidade jamais satisfeita, de um desejo de saber e compreender que periodicamente será reposto pelas situações conjunturais, ou seja, estas funcionariam como fatores desencadeantes da primitiva curiosidade. Ao mesmo tempo, irá constituir-se como zona de fragilidade psíquica do sujeito, uma face obscura e para sempre desconhecida. Um dos espaços sociais privilegiados em que a criança, ao se tornar adulto, vai repor essa angústia é o trabalho. Nesse locus procurará, indiretamente, elaborar esse sofrimento primitivo e, a cada enigma do trabalho que resolver, sentirá que se fortalece psiquicamente e a zona de obscuridade diminuirá um pouco. Dejours chamará de ressonância simbólica a esaa complexa relação entre o mundo psíquico e o mundo do trabalho. Para a apreensão das angústias vividas no trabalho, Dejours, inspirado na Psicanálise, propõe uma atividade de escuta atenta à fala dos trabalhadores. Não só a fala individual, mas principalmente a coletiva 10 . Isso porque, para a Psicodinâmica do Trabalho, se o sofrimento é da ordem do singular, sua solução é coletiva. Para tanto é fundamental que se crie o que o autor chama de espaço público, espaço de circulação da palavra coletiva. É na escuta do que é expresso que se cria a possibilidade do sofrimento emergir e sua solução ser pensada por todos. Como bem demonstrou a Psicanálise, fala e escuta autênticas não são dissociáveis. São atividades intrinsecamente ligadas e uma não existe sem a outra. A construção do espaço público pelo coletivo do trabalho passa necessariamente pela aprendizagem da escuta e da fala. É um processo complexo, cheio de conflitos, discussões, confrontos, deliberações e arbitragens entre as diversas pessoas. O futuro dessa construção é incerto e desconhecido. No plano pessoal, exige-se muito dos indivíduos engajados nesse processo. Freqüentemente os efeitos são desastrosos para os trabalhadores quando não ocorre o reconhecimento. Para que haja então um comprometimento pessoal mais duradouro nesse processo, é necessário que eles vejam a possibilidade de retribuição para os seus esforços: “(...) a forma específica da retribuição é o reconhecimento no sentido duplo do termo: reconhecimento no sentido de admitir essa contribuição da pessoa e reconhecimento no sentido de gratidão” (Dejours, 1999b, p. 29, itálicos do autor).

Não se trata de qualquer reconhecimento, mas sim do reconhecimento dos pares, na medida em que estes conhecem a fundo o trabalho e podem avaliá-lo em aspectos por vezes menos visíveis para os leigos. O autor tem consciência de que o julgamento dos pares é o mais severo e crítico. Ao passar pelo escrutínio deles e receber sua aprovação, o trabalhador sente-se retribuído e sai fortalecido desse processo. Junto a esse reconhecimento, um outro é citado por Dejours: o de utilidade, aquele feito pelo cliente e pela chefia. Esses dois mecanismos de reconhecimento são fundamentais, pois o que em última instância está em jogo é sua identidade. Ela se constitui no interjogo das relações sociais, sendo que um dos elementos essenciais para sua produção é o reconhecimento social. O trabalho, nesse sentido, é um campo privilegiado na conquista da identidade pelos indivíduos. Cabe aqui uma consideração sobre o reconhecimento social no campo do trabalho: ele ocorre de forma indireta em relação à atividade. Nesse sentido, “o que o sujeito procura fazer reconhecido é o seu fazer e não o seu ser (...) Somente depois de ter reconhecida a qualidade do meu trabalho é que posso, em um momento posterior, repatriar esse reconhecimento para o registro da identidade” (Dejours, 1999b, p. 21). Desse modo sintético podemos compreender como Dejours articula as três racionalidades apontadas por Ferreira.

O sentido do trabalho

Gostaríamos de apontar agora uma outra questão que perpassa a discussão realizada até o presente momento e que é essencial na discussão sobre trabalho e subjetividade. Tratase da questão da produção da significação, do sentido do trabalho pelos indivíduos. Isso implica, para o pesquisador, a difícil tarefa de aceder ao sentido das condutas e comportamentos dos sujeitos no trabalho, compartilhar a significação que estes atribuem às suas ações. Como a Psicodinâmica do Trabalho situa-se nas trilhas abertas da tradição compreensiva nas Ciências Humanas, isso significa defender a concepção de um sujeito “responsável pelos seus atos e capaz de pensar, de interpretar os sentido da situação em que se encontra, de deliberar ou de decidir e de agir”. Significa supor que ele possui inteligência – isso em dois sentidos: “inteligência como competência cognitiva e inteligência como liberdade de aceder à inteligibilidade, à compreensão das coisas ou da situação (inteligência das coisas)”. É admitir que ele (o trabalhador) “...age em função da razão” (Dejours, 1999c, p. 207). Compreender as racionalidades das ações de um sujeito com essas características significa pôr a difícil questão da interpretação com todas as conseqüências possíveis: “seu estatuto, sua verdade, sua validação, sua verificação” (Dejours, 1999c, p. 207). Não nos parece à toa que Dejours será conduzido diretamente a discutir a questão da hermenêutica. Dois serão os seus interlocutores: Gadamer e Ricoeur. Gadamer é importante pois seu projeto consiste não em desenvolver “um processo de compreensão, mas elucidar as condições que permitem a compreensão” (Dejours, 1999c, p. 208). Em outras palavras, Gadamer renuncia a fazer da hermenêutica o fundamento das ciências humanas: “a tarefa da hermenêutica é a de elucidar o milagre da compreensão, não da comunhão misteriosa das almas, mas a da participação de uma significação comum” (p. 208). As condições que tornam o projeto hermenêutico possível são: reabilitação dos pressupostos; reabilitação da autoridade da tradição; o sentido de um texto ultrapassa seu autor; interpretação, compreensão do sentido, distância crítica e acesso ao horizonte do outro; recolocação; o problema da aplicação; o problema da relação com a ética; e compreender é
re-apreender a questão do outro
11
.
Vai ser Ricoeur quem vai repor a questão dos fundamentos para a hermenêutica
recusada por Gadamer. Segundo Dejours, Ricoeur propõe um meio de ultrapassar a oposição
clássica entre ciências da natureza e ciências do espírito, entre explicar e compreender, e
retoma o problema da arbitrariedade da interpretação, ressaltando também a da validação.
Logo, o interesse em dialogar com Ricouer decorre do fato desse autor distinguir e discutir
três operações essenciais no processo de interpretação: a validação, a objetivação e a
avaliação.
Conclui que do ponto de vista epistemológico, Ricoeur e Gadamer chegam a um
forte consenso entre eles: o antipsicologismo. Que as ciências da natureza e as positivistas
excluam a subjetividade de suas atividades científicas enquanto condição básica da
objetividade é compreensível, mas isso ocorrer com a hermenêutica deixa Dejours perplexo.
Com efeito, diz Ricouer, sintetizando a posição de ambos: “É necessário afirmar firmemente
que a questão que se trata de reconstituir diz respeito em primeiro lugar, não às experiências do
pensamento do autor, mas unicamente ao sentido do texto em si mesmo” (citado por Dejours,
1999c, p. 212).
O que incomoda Dejours é o fato desses respeitados hermeneutas terem como
projeto de objetividade de suas atividades a eliminação de qualquer resquício de
subjetividade. Em outras palavras, na sua démarche hermenêutica e científica nas ciências
humanas, Ricoeur se esforça em expurgar “os restos relativos à psicologia do sujeito, seus
modos de pensamento, seu sofrimento, suas intenções e, de uma maneira mais geral, sua
subjetividade” (Dejours, 1999c, p. 212).
Ora, a Psicodinâmica do Trabalho, ao tentar entender a ação de um determinado
sujeito em um contexto determinado de trabalho, sabe que todo comportamento é motivado,
tem um sentido. Se uma certa conduta é insólita, isso se deve ao sofrimento subjetivo e às
estratégias defensivas contra esse sofrimento. A inteligibilidade desse ato do sujeito vem não
da conduta que ele expressa, mas do sofrimento que o motiva. A racionalidade que emerge a
partir dessa análise do sofrimento é denominada por Dejours de racionalidade páthica. Ela se
encontra no centro mesmo da investigação da Psicodinâmica do Trabalho.
Logo, a Psicodinâmica do Trabalho “não é uma disciplina voltada somente para a
produção de conhecimento sobre as relações entre sofrimento, prazer e trabalho (...) o
sofrimento não é um objeto de pesquisa como os outros. A palavra autêntica, pronunciada
sobre o sofrimento, é quase sempre, ao mesmo tempo, demanda de auxílio” (Dejours, 1999c,
p. 215). Dejours defende então que “a pesquisa é também uma ação, e a investigação é
também uma prática (ou melhor, uma práxis)” (p. 215).


Para ler e saber mais: http://www.revistas.usp.br/cpst/article/view/25852

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